[Misbehaviors]

"Nothing can come of nothing."

03:21

La Santa Muerte y la Reencarnación de Encarnación.

Postado por Uncool |

La Santa


Bailamos, bailamos
El santo y yo.
(Siouxsie & The Banshees - El Dia de Los Muertos)

Doña Encarnación Calderón, senhora temente a Deus, pode ser vista sempre às voltas do Santuário de Nossa Senhora de Guadalupe com seu rosário na mão e o véu preto envolvendo os cabelos. Já passara há tempos do frescor da juventude e apesar de um pouco roliça, mantinha a maciez da pele e o perfume floral que exalava dos poros de seu corpo. Facialmente não tinha nada que lhe desabonasse, passava até desapercebida, mas nunca tão invisível devido aos seios fartos e a ancas protuberantes. O clima árido tipicamente mexicano dava a Doña Encarnación suadeiras intensas, que fazia com que a sua pele fosse sempre lustrosa, conferindo uma luz barroca que fazia com que a sua feição, já então marcada pela idade, ficasse santificada. O sorriso era brilhante e profuso; os olhos como penetrantes estalactites e com matizes de castanho, que ora notava-se o mais puro dos méis ou então o mais escuro dos âmbares.

Desde que seu marido, Don Calderón morrera, Doña Encarnación perdera o interesse pelo mundano, voltando todas as suas ações e intenções para a providência divina. Durante o
casamento, que durou 25 anos, fora completamente feliz: Tinha a casa dos seus sonhos, o marido que a completava em todos os aspectos, sempre tinha visitas para servir os seus tacos apimentados com guacamole e passava as tardes sempre a gritar histericamente com os filhos das vizinhas que insistiam em mijar nas roupas que eram postas no varal, até que seu mundo ruiu.

Don Calderón morreu em uma noite quente e abafada de verão devido a um aneurisma cerebral, e, conforme as mais respeitadas opiniões médicas regionais, causado por intensa atividade sexual. Sim, Doña Encarnácion tinha o sangue latino nas veias e o fogo nas entranhas, o que sempre levava seu esposo à exaustão e garantia a sua aparência esquálida, pálida, cabelos sebosos e a eterna indisposição para tudo, exceto para a tequila, que bebia aos litros. Fora encontrado por sua esposa que gritava histericamente e arrancava os cabelos aos tufos, chorando copiosamente e dramatizando, com todos os artifícios dos mexicanos, fazendo tudo ter uma dimensão muito maior do que a realidade.

A viúva, livre da dor da perda, da angústia de dormir sozinha na cama de casal e da catatonia, encontrava forças nos sermões proferidos pelo pároco da igreja local, e assim se tornou uma religiosa. Todos os dias, fervorosamente, ia à igreja: Orava, dava vários Glória a Deus e chorava em meio à Aleluias, afirmando ser tocada pelo Espírito Santo (o que mais tarde, Encarnación descobriu que era um desequilíbrio hormonal). A partir daí, encontrou seu caminho e sua paz de espírito.

O México se preparava para a comemoração de "El Dia de Los Muertos". A cidade estava completamente enfeitada com caveiras coloridas, adornadas com flores de todos os tipos e altares em exaltação à morte, que aparecia sorridente em todos os cantos, sorrindo escarnecidamente e secretamente para todos os passantes, já que conhecia o fim de cada um e todos os seus atos. Cruzes pobres de madeira fajuta pintadas de branco se espalhavam por todo o canto e no pé de cada imagem ricamente trabalhada havia receptáculos, em que se depositava bebida, flores, cigarros, nomes, orações e objetos pessoais dos defuntos há muito tempo desencarnados e que hoje nem mais o pó restava no fundo dos caixões, sem mencionar as velas de infindáveis cores e o cheiro de cera queimada que salpicava o chão formando mosaicos coloridos. Ao cair da noite, a população já se encontrava nas ruas, bailando, saltitando e comemorando o festejo, tudo em memória de seus mortos e em função da própria morte.

Encarnación então comemorou, sempre recatada, seguindo as tradições da moral e dos bons costumes. Em certo momento observou um homem totalmente tatuado, da cabeça aos pés, que dançava como em transe, rindo de forma descontrolada e com os olhos vidrados, falando uma língua estranha, composta por um coro de vozes graves. A atração foi instantânea. Rodeou o homem como se imantada pela sua energia, e se sentindo impelida a dançar, tomou o misterioso homem pelas mãos. Esqueceu rapidamente os seus votos, os seus princípios ao sentir os pelos da nuca eriçados.

Sentiu imediatamente o fogo do desejo queimando forte interiormente, sabia o que era aquilo, já havia passado por aquilo antes e há anos já tinha renunciado tais desejos, mas era tarde demais: O diabo estava em suas carnes, corroendo-a. Enquanto dançava, ria, rodopiava, e com a barra da saia fazia seu jogo de sedução. Não estava mais consciente de si, aquele corpo não a pertencia mais, e o seu novo dono, não tinha pudores, para o escândalo dos mais próximos. Em pouco tempo já não tinha mais a parte de cima das vestes.

O homem a tomou nos braços e a conduziu para sua casa, e assim houve a consumação do fato: O roçar das peles, o morder dos lábios, os gemidos de satisfação, a fustigação das carnes, as más posições que paradoxalmente eram posições confortáveis, o suor escorrendo pela espinha dos corpos escurecidos pelo sol tórrido da região, o enrijecimento dos músculos, a contração dos glúteos, o esforço dos braços, o nó das pernas, o arqueamento da coluna, os gritos, os fluídos corporais, o toque do Espírito Santo que sempre sentia na greja, o silêncio e a inconsciência.

O Sol já despontava quando Encarnácion acordou assustada por não saber que local era aquele e o que fazia lá. Nenhum sinal do misterioso homem. A cidade estava completamente revirada, como se houvesse passado pelo olho de um furacão, assim como a própria. A sujeira entupia os bueiros, copos por toda parte, pessoas dormindo no chão agarradas às suas garrafas, como se fossem companheiras de longa data, bandeirinhas enroladas aos fios de eletricidade, todas imagens da morte tombadas com a face voltada para o chão, algumas quebradas fazendo com que o pó de gesso se misturasse a sujeira dos cabelos de Encarnácion, que já estavam completamente desgrenhados, e tinha as poucas vestes rasgadas e o próprio corpo todo arranhado, com o sangue coagulado em alguns pontos. Aproveitou para correr para a sua casa e prostar-se diante do genuflexório na intenção pedir perdão a Deus pela falta cometida e também por desonrar a memória do marido.

O choque foi imediato ao cruzar pela soleira da porta e notar-se diante do espelho: Não era mais uma mulher, muito menos um ser humano. Seus cabelos estavam ralos, dentes faltavam em sua boca que babava incontrolavelmente e escorria pela pele decrépita e fina, fazendo com que se percebesse a estrutura óssea desgastada por debaixo dela. Não acreditou, aquilo não podia estar acontecendo, deveria ser uma alucinação, e assim, em uma corrida veloz saiu a caminho da igreja.

Não foi necessário. A resposta veio antes...

No meio do caminho, na praça, notou uma imagem da morte escarnecida que estava mais escarnecida ainda, regozijando-se em júbilo; mas não era a morte de antes. Era si própria, como se estivesse ante ao espelho novamente, com a mesma feição, mas rindo descaradamente. Urrou furiosa e saiu em busca das imagens que estavam no chão com a face pra baixo. Todas eram iguais, todas eram ela mesma, tal qual vira no espelho, tal qual vira na praça. Enquanto corria e gritava ensandecida pelas ruas de Guadalupe, a população despertava da tempestuosa comemoração e saía em romaria logo atrás; alguns caindo de joelhos e outros rogando bênçãos.

Encarnación era agora La Santa Muerte.

Na verdade sempre fora, mas apenas o que havia dentro de si só esperava o momento oportuno para aflorar. Todos tem o seu destino, todos tem a sua benção, a sua danação e a sua redenção. Toda bondade tem as suas falhas de existência e carrega dentro de si a faísca da transformação, independente de sua natureza. Ao passo que toda bondade é apenas uma questão de perspectiva, subjetividade e relatividade, assim como a beleza está nos olhos de quem vê, assim, da mesma forma que se acende uma vela pra Deus, tem que se acender uma para o Diabo, para que haja equilíbrio e o todo não pese apenas em um dos pratos da balança existencial.

4 Malcriações:

Bruno disse...

UAU.

Gostei demais! É incrível a riqueza das crenças mexicanas (não que as brasileiras sejam fracas, claro), mas essa profusão de cor ligadas à morte é sensacional.

Sim, vi muitas cores durante a leitura, me pegou mesmo :P

PS: Autoria sua? Palmas ora!

Tânia Souza disse...

Um conto envolvente, surrealista e pleno de simbologia em certos momentos, prende pela forma como os fatos são descritos e pela intensidade narrativa, adorei.

wender disse...

olá!!! essa imagem da santa muerte é sua ou vc achou essa imagem na internet? estava procurando mais fotos desta,da msm imagem e não encontrei nenhuma igual...
estava procurando uma interessante para tatuar...
se puder entra em contanto comigo:
wendersantos@ymail.com
agrdeço!!!

Anônimo disse...

Cintia

Legal, gostei mas como todos os seus contos tem um tom de sexo, sarcasmo, sei que não gosta que falo isto mas sinto em tudo o que fala.

Somente um porém Tequila é bebida para mulheres, pois é fraca a de homens é outra

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