[Misbehaviors]

"Nothing can come of nothing."

01:31

Caim Vs. God.

Postado por Uncool |

Caim


Hoje terminei de ler o novo livro de José Saramago, "Caim".

Temos nesse romance todos os componentes para diversão garantida. Um Deus às avessas, um fraticida com senso moral, um jumento invejável, personagens bíblicos, lugares sagrados e situações inusitadas, tudo com humor refinado e ferino, coisa que grande parte das pessoas não conseguem ver nas obras do grande escritor português, e talvez por isso o detestem tanto. Saramago faz um revival do Velho Testamento - da criação ao dilúvio - e coloca em xeque as situações relatadas na bíblia, que como Saramago diz, é "um manual de maus costumes".

O mais notável dentre toda a obra é o embate entre o homem e Deus. Temos de um lado, Caim, que assassinou o irmão Abel e do outro, um Deus egoísta, mesquinho, ciumento e soberbo.

Caim, logo após ter matado Abel, fala com o criador, que se zanga pelo ato e condena Caim a viver errante pela Terra, apenas com uma marca negra na testa, que é o seu salvo conduto na jornada que o leva a ser espectador das maiores atrocidades cometidas em nome da religião, para justificar somente a necessidade de auto afirmação divina.

Durante a leitura, temos a impressão, por uma conversa com Caim, que Deus não admite alguém mais tirano e cruel que ele, mas isso fica somente no plano da especulação, tudo nas entrelinhas de Saramago, que sempre querem dizer milhares de coisas além que o expressado. Essa é a beleza da obra, a possibilidade de um novo ponto de vista exposto por alegorias fantásticas.

O Diabo também tem participação na trama, mas curiosamente, é apenas um instrumento de Deus para a manifestação da vontade divina, sugerindo que o Diabo age porque Deus deixa e que todo o trabalho sujo que o divino não põe a mão é ele quem faz.

Caim, que desde o começo da história, não vê Deus com bons olhos, vai intensificando o seu ponto de vista quando começa a sua cruzada. Assiste ao sacríficio de Isaac a pedido de Deus, a guerra santa de Moíses, a queda da Torre de Babel, a destruição de Sodoma e Gomorra dentre outros, reforçando que o Criador é um grande canalha, que atua apenas em benefício próprio.

Sutilmente, o livro nos leva a repensar a questão da moral, do bem e do mal, e acima de tudo, a benevolência divina, que exposto sob a ótica de Saramago, demonstra que a humanidade precisa repensar a posição de Deus enquanto entidade superiora que rege todos os príncipios da vida e ter maior senso moral, maior senso de justiça e discernimento.

Os julgamentos de Caim e os seus pontos de vista é uma chamada à luz para todas as pessoas que ainda se fiam aos príncipios religiosos como estilo de vida, mostrando a necessidade de apartar o fanatismo religioso da razão crítica, e que somente assim, provavelmente, teremos a humanidade livre de todos os males.

Não comentarei sobre o (incrível!) final do livro, mas tenho certeza que todos ficarão boquiabertos e sairão com um ponto de interrogação nefasto e assombroso pairando sobre a cabeça, levando à pergunta de um milhão de doláres.

Segue abaixo um trecho do livro, do primeiro capítulo:

“Quando o senhor, também conhecido como deus, se apercebeu de que a adão e eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de ficar irritado consigo mesmo, uma vez que não havia mais ninguém no jardim do éden a quem pudesse responsabilizar pela gravíssima falta, quando os outros animais, produtos, todos eles, tal como os dois humanos, do faça-se divino, uns por meio de mugidos e rugidos, outros por roncos, chilreios, assobios e cacarejos, desfrutavam já de voz própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após outro, sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela garganta abaixo. Dos escritos em que, ao longo dos tempos, vieram sendo consignados um pouco ao acaso os acontecimentos destas remotas épocas, quer de possível certificação canónica futura ou fruto de imaginações apócrifas e irremediavelmente heréticas, não se aclara a dúvida sobre que língua terá sido aquela, se o músculo flexível e húmido que se mexe e remexe na cavidade bucal e às vezes fora dela, ou a fala, também chamada idioma, de que o senhor lamentavelmente se havia esquecido e que ignoramos qual fosse, uma vez que dela não ficou o menor vestígio, nem ao menos um coração gravado na casca de uma árvore com uma legenda sentimental, qualquer coisa no género amo-te, eva. Como uma coisa, em princípio, não deveria ir sem a outra, é provável que um outro objectivo do violento empurrão dado pelo senhor às mudas línguas dos seus rebentos fosse pô-las em contacto com os mais profundos interiores do ser corporal, as chamadas incomodidades do ser, para que, no porvir, já com algum conhecimento de causa, pudessem falar da sua escura e labiríntica confusão a cuja janela, a boca, já começavam elas a assomar. Tudo pode ser. Evidentemente, por um escrúpulo de bom artífice que só lhe ficava bem, além de compensar com a devida humildade a anterior negligência, o senhor quis comprovar que o seu erro havia sido corrigido, e assim perguntou a adão, Tu, como te chamas, e o homem respondeu, Sou adão, teu primogénito, senhor. Depois, o criador virou-se para a mulher, E tu, como te chamas tu, Sou eva, senhor, a primeira dama, respondeu ela desnecessariamente, uma vez que não havia outra. Deu-se o senhor por satisfeito, despediu-se com um paternal Até logo, e foi à sua vida. Então, pela primeira vez, adão disse para eva, Vamos para a cama.
Set, o filho terceiro da família, só virá ao mundo cento e trinta anos depois, não porque a gravidez materna precisasse de tanto tempo para rematar a fabricação de um novo descendente, mas porque as gónadas do pai e da mãe, os testículos e o útero respectivamente, haviam tardado mais de um século a amadurecer e a desenvolver suficiente potência generativa. Há que dizer aos apressados que o fiat foi uma vez e nunca mais, que um homem e uma mulher não são máquinas de encher chouriços, as hormonas são coisa muito complicada, não se produzem assim do pé para a mão, não se encontram nas farmácias nem nos supermercados, há que dar tempo ao tempo. Antes de set tinham vindo ao mundo, com escassa diferença de tempo entre eles, primeiro caim e depois abel. O que não pode ser deixado sem imediata referência é o profundo aborrecimento que foram tantos anos sem vizinhos, sem distracções, sem uma criança gatinhando entre a cozinha e o salão, sem outras visitas que as do senhor, e mesmo essas pouquíssimas e breves, espaçadas por longos períodos de ausência, dez, quinze, vinte, cinquenta anos, imaginamos que pouco haverá faltado para que os solitários ocupantes do paraíso terrestre se vissem a si mesmos como uns pobres órfãos abandonados na floresta do universo, ainda que não tivessem sido capazes de explicar o que fosse isso de órfãos e abandonos. É verdade que dia sim, dia não, e este não com altíssima frequência também sim, adão dizia a eva, Vamos para a cama, mas a rotina conjugal, agravada, no caso destes dois, pela nula variedade nas posturas por falta de experiência, já então se demonstrou tão destrutiva como uma invasão de carunchos a roer a trave da casa. Por fora, salvo alguns pozinhos que vão escorrendo aqui e ali de minúsculos orifícios, o atentado mal se percebe, mas lá por dentro a procissão é outra, não tardará muito que venha por aí abaixo o que tão firme havia parecido. Em situações como esta, há quem defenda que o nascimento de um filho pode ter efeitos reanimadores, senão da libido, que é obra de químicas muito mais complexas que aprender a mudar uma fralda, ao menos dos sentimentos, o que, reconhe­ça-se, já não é pequeno ganho. Quanto ao senhor e às suas esporádicas visitas, a primeira foi para ver se adão e eva haviam tido problemas com a instalação doméstica, a segunda para saber se tinham beneficiado alguma coisa da experiência da vida campestre e a terceira para avisar que tão cedo não esperava voltar, pois tinha de fazer a ronda pelos outros paraí­sos existentes no espaço celeste.”

Um comentário de Pillar Del Rio diz que "Caim" não irá ofender aos católicos. Será?

Particularmente, acredito que sim. Não serão todos que irão engolir sair da boca de uns dos personagens que Deus é um grande filho da puta e que todos os atos, por mais malevólos que sejam, cometidos pelos homens, sejam indiretamente obra de Deus.

Eu indico, sem sombras de dúvidas. Um livro para ateus iluminados, protestantes encrenqueiros, pessoas desocupadas, curiosos, racionalistas, teológos, profanos, biblistas sátiros, agnósticos anárquicos, descrentes espiritualizados, e claro, aqueles que adoram ver o circo pegar fogo e se deliciam com isso.

1 Malcriações:

Anônimo disse...

Cintia

Apenas não leio porque acho este escritor chato independendentemente do titulo que escreve eu o acho cansativo, ponto de vista apenas

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